domingo, 15 de janeiro de 2012

Entrega do Trabalho de Direito da Cultura, sobre a Proibição do véu em França.

Universidade Católica Portuguesa.


Faculdade de Direito, Escola de Lisboa.


Direito da Cultura.


“ A proibição do uso do véu em França”








Stéphanie Correia Pereira.
4º ano.
nº de aluna: 140108079.











Índice.



Introdução Pag. 3

O significado do véu na Cultura islâmica. Pag. 4

A Constituição Francesa e o Princípio da Laicidade. Pag. 6

Lei nº2010-1192, de 11 de Outubro: proibição do uso do véu em França nos locais públicos. Pag. 11

Conclusão. Pag. 14.

Bibliografia. Pag. 15.

Anexos. Pag. 16
Introdução.


Longe estão os tempos das intromissões das correntes religiosas nas políticas das Nações, que ocorreram sobretudo na Idade Média, em que o peso, a autoridade e a importância da Religião eram predominantes.

Desde há muito que existe uma relação de distancia entre o Estado e a Religião, em que o Governo e as instituições religiosas devem ser mantidos separados e independentes uns dos outros, adoptando-se o Princípio da Separação Igreja-Estado.

Hoje, o conceito de separação já foi aprovado em vários países, mas diferentes graus, dependendo das estruturas legais aplicáveis e das visões predominantes relativamente ao papel da religião na sociedade. Alguns países o Princípio de Laicismo, como a França, por exemplo, e outro, mantiveram o reconhecimento constitucional de uma religião oficial do Estado, como por exemplo, o Reino Unido.

Mas apesar do Cristianismo sempre ter sido a cultura dominante na Europa, devido a fenómenos de globalização e emigração, fácil é de constatar o aparecimento de outras culturas na Europa, como por exemplo, a cultura Islâmica. Como tem sido recebido esse fenómeno? O fenómeno da existência de uma variedade de culturas em França (sobretudo do Cristianismo e do Islão) tem sido no sentido de nenhuma delas ser predominante, para favorecer a integração dos seus membros, existindo um”convívio” entre elas, ou no sentido de assimilação dos imigrantes e da sua cultura no pais de acolhimento, neste caso, em França?
Irei proceder, na minha primeira parte, a uma análise do significado do véu na Cultura islâmica, para depois, numa segunda parte, analisar a Constituição Francesa e o Princípio da Laicidade em França, terminando com uma breve análise da Lei nº2010-1192, de 11 de Outubro, que proíbe o uso do véu islâmico nos locais públicos, em França.

O Significado do véu na Cultura Islâmica.

É essencial começarmos por definir o que se entende por véu islâmico, quais as suas finalidades, e o significado que este objecto material tem para os membros da Cultura islâmica para percebermos porque a proibição do seu uso é uma questão actual, bastante delicada e controversa na sociedade francesa.


O que se entende por “Hijab” ou véu islâmico?

É um termo que pode ter vários significados, desde que a colocação de um lenço para cobrir os cabelos até um véu cobrindo o rosto da muçulmana, por exemplo. Assim, de acordo com a maior parte dos estudiosos muçulmanos, não é obrigatório cobrir o rosto, defendendo que é necessário cobrir todo o corpo da mulher com excepção das mãos e do rosto. Por sua vez, uma minoria dos estudiosos muçulmanos, considera que é obrigatório ou pelo menos altamente recomendável cobrir o rosto. De qualquer forma, nada impede a mulher de cobrir o rosto se entender que fica menos sujeita ao assédio ou se considerar que é um dever religioso. Adoptamos a primeira definição por ser a mais frequente e visível nos dias de hoje.

Do mesmo modo, ainda é possível encontrar divergências sobre o modelo específico de vestimenta e as suas cores. Para exemplificar esta divergência, vamos recorrer a duas passagens do Alcorão.

Alcorão Surata 33:59. “Ó Profeta, diz ás tuas esposas, ás tuas filhas, e ás mulheres dos crentes que (quando saírem) se cubram com suas Jalabib” ..”.
Alguns entendem que a palavra Jalabib abrange qualquer vestimenta desde que não seja justa nem transparente, que cubra o corpo da mulher, podendo ser de qualquer cor, embora o branco possa ser mais agradável aos olhos por estar relacionado com a ideia de pureza. Ao contrário, outros entendem que deve ser um vestido longo, folgado, sem recortes usando cores escuras por serem mais sóbrias.

Alcorão Surata 24:31. “ que cubram o peito com seus Khimar” (véus)”.
A maioria dos tradutores do Alcorão concordam que esta palavra se refere a um lenço amplo usado na época do Profeta, que cobria a cabeça, pescoço e talvez os ombros, deixando o restante exposto. Assim, foi ordenado ás mulheres que cobrissem também os seus peitos, continuando naturalmente a cobrir a cabeça, o pescoço, e os ombros.

Antes de continuarmos a nossa análise, é de referir que o Alcorão é o código de vestimenta para os seguidores, onde encontramos a ideia de obrigatoriedade do uso do véu, como demonstra a última passagem deste código que referimos no parágrafo anterior.
Quais são as finalidades do uso do véu na Cultura Islâmica?

É essencial referi-las para entendermos o porquê da sua obrigatoriedade e da sua importância na Cultura Islâmica, e para perceber que não se trata apenas de um objecto material, mas representando muito mais do que isso!

Um dos fins em vista é de evitar ou reduzir o assédio sexual. Para alcançar esta finalidade, existem regras claras de comportamento e vestimenta que tornam obvia qualquer investida de assédio sexual, tal como a proibição de um homem e uma mulher, que não sejam casados ou parentes muito próximos (pai e filha, ou irmã e irmão por exemplo), de ficarem sozinhos em ambientes fechados, mesmo que a mulher use o véu, ou ainda a interdição de qualquer contacto físico entre um homem e uma mulher que não sejam casados ou parentes muito próximos (beijinhos no rosto, uma “tapadinha” nas costas”, abraços e até apertos de mãos são proibidos, embora em relação a este último gesto tenha havido uma flexibilização dos que vicem em países não muçulmanos).

O uso do véu visa ainda facilitar a observação de castidade até o casamento. Traduz-se na ideia de que o uso de véu “abranda” as pressões naturais do desejo sexual entre os integrantes da comunidade muçulmana que se encontram solteiros, divorciados, viúvos, até encontrarem um(a) parceiro(a) para casar. Assim, a barreira natural criada pelo Hijab e as regras de comportamento da sociedade islâmica tornam mais fácil a observância deste dever religioso. Pela mesma razão, é recomendado que os casados não dêem demonstrações de carinho em público, em consideração com os que se encontram sozinhos, o que, frequentemente, é interpretado pelos não muçulmanos como a falta de amor entre os casais muçulmanos.

Através deste dever religioso, a cultura islâmica pretende uma valorização da mulher pelas suas qualidades intelectuais e morais e assim, proteger a mulher de futilidades. É usual observar que uma das queixas frequentes das mulheres bonitas e famosas é que todos se interessam pela sua aparência e não pelo seu intelecto, e ao envelhecerem, muitas entram em “depressão” por reconhecerem que a única razão pela qual eram admiradas era a sua beleza física; tal não acontece com as qualidades intelectuais e morais, que aumentam com o passar do tempo, e assim, as mulheres muçulmanas não vêem na velhice uma ameaça ao espaço que conquistaram na comunidade. Pois, o Hijab protege a mulher da ilusão de que aperfeiçoar-se como ser humano é desnecessário quando se é bonita.

Assim, observamos que o véu, seja qual for a vestimenta, o modelo ou a cor adoptada, tem um significado considerável na cultura islâmica. O uso do Hijab para todas as muçulmanas, de acordo com a história do véu e com o texto do Alcorão, não aparece associado a uma vinculação à vontade dos homens da família. A sua adopção aparece como uma consequência do fortalecimento da fé, através da prática do Islão aparecendo como algo que dignifica a mulher, dando-lhe valor e impondo respeito. Do ponto de vista histórico, o véu não era associado à ideia de submissão e a sua obrigatoriedade não nasceu para ser um instrumento de desigualdade entre homens e mulheres. Para exemplificar esta ideia, saliente-se que a adopção de certos conceitos legais, tais como o princípio da solidariedade social, da igualdade diante da lei, apareceram primeiro na Cultura Islâmica, sendo que o Ocidente teve de esperar para ver semelhantes princípios serem adoptados. É de salientar que, hoje, dada a evolução observadas na sociedade, esse estado de coisa mudou consideravelmente.


A Constituição Francesa e o Princípio da Laicidade.

A organização sistemática e o Direito à Cultura no texto de 1958.

A Constituição francesa tem ao todo 89 artigos. Podemos tentar dividi-la por partes, e encontramos sete. A primeira abrange o preambulo e os artigos 2, 3, 4 em que sobressai o princípio da soberania e em que há um reconhecimento dos direitos fundamentais, e uma remissão para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), para o preambulo da constituição de 1946, para os Princípios Fundamentais Reconhecidos pelas Leis da Republica, para a Cartado Ambiente de 2004, tendo estes textos valor constitucional, como veremos mais à frente no nosso trabalho. A segunda parte vai desde o artigo 5 ao artigo 23 e refere-se ao poder executivo; a terceira abrange o poder legislativo (artigos 24 a 33: Assembleia Nacional e Senado); a quarta contem as relações entre o Parlamento e o Governo, e Tratados e Acordos Internacionais (artigos 34 a 55), a quinta parte envolve outros actores (artigos 56 a 71), como por exemplo, o Conselho Constitucional, a sétima parte inclui as relações de Direito público (artigos 72 a 88), e a oitava o artigo sobre a Revisão Constitucional (o art. 89).

A Constituição Francesa fala pouco dos Direitos Fundamentais e remete para o legislador a tarefa de fixar as normas sobre estas matérias. (por exemplo, no art. 34, mas também 72 alínea 4, 73 alínea 6); assim, ela não define as liberdades nem as garantias fundamentais dos cidadãos, o Conselho Constitucional procede a uma qualificação e apreciação caso a caso, através das suas decisões. Podemos encontrar, por exemplo, a liberdade de consciência e de ensino nas decisões de 23 de Novembro de 1997, e 19 de Junho de 2001. Numa das suas decisões, o Conselho Constitucional definiu as liberdades públicas como sendo normas jurídicas que enunciam um direito ou uma liberdade de tipo individual para a qual o legislador é competente para fixar as garantias fundamentais dos cidadãos para o seu exercício.

A competência legislativa em face do poder regulamentar e das colectividades territoriais.

Por um lado, nesta matéria, o legislador não é a única autoridade competente, não podendo exceder-se sob pena de incompetência, existindo reserva relativa de competência legislativa em certas matérias. Assim, é da competência regulamentar, de acordo com o artigo 37 da Constituição, estabelecer normas que constituem modalidades de instalações, medidas de aplicação ou de execução das liberdades, por exemplo. Por outro lado, de acordo com a Constituição, há matérias que ele deve fixar, não podendo caber no âmbito de apreciação do poder regulamentar ou de qualquer outra autoridade, tratando-se neste caso, de reserva absoluta de competência legislativa.

O conteúdo do exercício da competência legislativa em matéria de Direitos Fundamentais, e as suas limitações constitucionais.

Existem exigências constitucionais de fundo relativamente à intervenção do legislador no tempo. Por um lado, antes de 1990, existia a ideia de, quando uma liberdade era considerada pelo Conselho Constitucional, nas suas decisões, como constituindo uma liberdade fundamental constitucionalmente protegida, o legislador não podia restringir o seu nível de garantia, era o “Effet cliquet”. Mas esta ideia foi desaparecendo, podendo o legislador adoptar novas disposições, modificar textos anteriores ou revoga-los substituindo-os por outras disposições, tendo “apenas” como limite o respeito pelo outros Direitos Fundamentais, e pelos bens jurídicos constitucionalmente protegidos.

Por outro lado, o Conselho Constitucional afirma que faz parte do conteúdo do exercício da competência legislativa a necessidade de conciliar, com realismo, as liberdades e direitos fundamentais constitucionalmente garantidos com outras liberdades ou direitos de valor constitucional potencialmente em conflito, ou muitas vezes com exigências colectivas e que dizem respeito á segurança (ordem pública, por exemplo), sem esquecer que a defesa muito intransigente de um direito pode comprometer a protecção de outros. Assim, para o Conselho Constitucional, sem a salvaguarda da ordem pública, o exercício das liberdade não seria assegurado.

Foi o que aconteceu em França, por exemplo com a expulsão de estrangeiros, uma vez que a presença deles constituía uma ameaça á ordem pública: houve uma conciliação e uma ponderação entre os direitos potencialmente em conflito, nomeadamente a liberdade de circulação, inviolabilidade do domicílio, e o princípio ou imperativo de ordem público, não se limitando o que era necessário para o exercício de uma liberdade, e não podendo existir um carácter excessivo, desproporcional, ou desequilibrado

A Constituição Francesa e Constituição Portuguesa: a recomposição ou decomposição dogmática do direito fundamental á cultura (?)

Nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, é muito nítida a consagração de uma dimensão negativa e uma dimensão positiva do direito fundamental à cultura em França. O direito cultural, enquanto liberdade cultural (de primeira geração), tem sido entendido pela jurisprudência e pela doutrina como uma manifestação das “liberdades de espírito” (les libertés de l’esprit) ou dos direitos do pensamento (“libertés de la pensée”) ou das liberdades intelectuais (“libertés intelectuelles”) pelo que se considera encontrar-se implicitamente consagrado desde os primórdios do constitucionalismo liberal. No que respeita ao direito á cultura, enquanto garantia de prestações estaduais (segunda geração dos direitos fundamentais), a sua consagração resulta do preambulo da Constituição de 1946, que enumera pela primeira vez na nossa história, o direito à cultura. Ela dispõe que a “Nação garante o igual acesso da criança e do adulto à instrução, à formação profissional e à cultura”. É de sublinhar que este preambulo tem valor constitucional, como veremos adiante.

Desta forma, e para estabelecer um ponto de comparação e distinção entre as duas Constituições em apreço, ainda nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, existe em Portugal uma opção dogmática de, partindo das diferentes normas constitucionais de direitos de natureza cultural, conjugar aquelas que estabelecem uma protecção jurídica subjectiva com aqueloutras que instituem uma tutela jurídica objectiva mas se encontram funcionalizadas ás primeiras, de modo a construir uma noção ampla de direito fundamental à cultura, traduzindo-se num procedimento de recomposição, feito a partir da diversidade e complexidade de normas relativas à cultura em matéria de direitos fundamentais (nomeadamente dos artigos 42, 73, 78 CRP).

Diversamente, em França existe um procedimento de decomposição. A doutrina, em face da “contenção do legislador constituinte” (ao contrário da prolixidade do nosso) em matéria de direito à cultura, parte de uma (ou de um número muito reduzido) de normas, para proceder á sua decomposição em distintas realidades jurídicas (faculdades, poderes, deveres, tarefas), reconstruindo assim as respectivas dimensões subjectivas e objectivas.

Mas, num caso como no outro, do que se trata é sempre da mesma tentativa doutrinária de encontrar uma noção de direito fundamental à cultura, que seja constitucionalmente adequada, mas seja também capaz de dar resposta aos problemas culturais dos modernos Estados de Direito democráticos. Assim, o direito fundamental à cultura, enquanto direito subjectivo, só pode ser um conceito quadro aberto, necessitando de preenchimento em concreto, e susceptível de diferentes variações de conteúdos.











Breve análise histórica para compreensão do surgimento do Princípio da Laicidade em França.

Na Europa, na Idade Média, a Igreja Católica romana tinha uma importância, um peso fundamental a nível religioso. Os judaicos eram alternadamente tolerados e perseguidos (por exemplo, em Espanha, foram expulsos em 1492); os protestantes eram igualmente perseguidos, como foi o caso em França, em 1685, na época de Luís XV. Assim, existiu um ambiente de falta de tolerância até á Revolução Francesa que fez com que desaparecesse a “Religião de Estado” (“Religion d’Etat”), aparecendo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, que teve, e tem alias, uma importância fundamental para a nossa análise. Desde então, a Liberdade Religiosa está constitucionalmente prevista em França, e foi sendo implementado o princípio da Laicidade. Em nome deste princípio, aparecia a ideia de que a manutenção desta liberdade implica o não favorecer nenhuma religião em relação ás outras e em relação aos que não acreditam, proíbe a ingerência das instituições religiosas no âmbito do Governo e da administração, e implica não conceder estatuto específico aos que praticam determinada religião.

Consequentemente, o sistema francês parece ter consagrado, historicamente, uma igualdade de direito entre as diferentes religiões. Mas será que esta igualdade jurídica é acompanhada de uma igualdade de facto, na prática, tendo em conta que é um pais de tradição católica?

Breve análise dos fundamentos jurídicos da Liberdade Religiosa e do Princípio da Laicidade.

Hoje, muitos Direitos e Liberdades são protegidos a vários níveis, mesmo para além das fronteiras estaduais. Tal acontece igualmente com a Liberdade Religiosa, existindo uma protecção a nível internacional, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que reconhece o Direito à Cultura e tem valor constitucional em França; mas ainda no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que consagra expressamente o Direito á Cultura nas suas múltiplas vertentes (de liberdade, de prestação, e de participação). Existe igualmente uma protecção a nível europeu, nomeadamente na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4 de Novembro de 1950, em que se verifica um reconhecimento apenas implícito do Direito à Cultura, e em particular, da Liberdade Religiosa, no seu artigo 9.

Mas para a nossa análise, importa sobretudo observar a protecção oferecida pelo Estado francês, tanto a nível constitucional como a nível legislativo.

A nível constitucional, a doutrina usa frequentemente a expressão de “bloco de constitucionalidade” para designar o conjunto de normas com valor constitucional. Nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, é uma construção jurisprudencial e doutrinária “tipicamente francesa”, que levou à consideração da natureza constitucional (não só material mas também formal) de direitos fundamentais contidos em textos constitucionais anteriores ao actualmente em vigor.
Assim, o Conselho Constitucional consagrou o valor constitucional, através da decisão de 16 de Julho de 1971, do Preambulo da Constituição de 4 de Outubro de 1958, que nos remete para o preambulo da Constituição de 1946 (já vimos que este consagra direitos fundamentais de segunda geração, como por exemplo o Direito á saúde, à liberdade sindical, Direito à greve e pressupõe prestações positivas por parte do estado e já não uma simples abstenção). Este estabelece “… Nul ne peut être lesé, dans son travail ou son emploi, en raison de ses origines, de ses opinions ou de ses croyances..”. A actual constituição remete ainda para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Agosto de 1789, que no seu artigo 10, protege a Liberdade Religiosa, estabelecendo “… Nul ne doit être inquiété pour ses opinions, même religieuses, pourvu que leur manifestation ne trouble pas l’ordre public établi par la loi”.

Têm ainda valor constitucional, os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República. O Preambulo da Constituição de 1946 refere-se a estes princípios mas não os enumera. Como exemplos, temos a Liberdade de Consciência que resultou da decisão de 23 de Novembro de 1977, e da decisão de 19 de Junho de 2001, bem como o princípio da Laicidade que resultou da lei sobre a separação entre a Igreja e o Estado, em 1905. Por último, é de referir que fazem igualmente parte do “bloco de constitucionalidade”, os objectivos com valor constitucional, mas que aqui não importa aprofundar.

O próprio texto constitucional de 1958, no seu artigo 1º, refere-se à liberdade religiosa e expressamente ao Princípio da Laicidade estabelecendo que “La France est une République indivisible, laique, démocratique et sociale. Elle assure l’égalité devant la loi de tous les citoyens sans distinction d’origine, de race ou de religion. Elle respecte toutes les croyances.”

Importa referir alguns textos legislativos que reforçam a ideia da adopção do Princípio da Laicidade. São numerosos os diplomas: a Lei de 28 Março de 1882, denominada “Loi Jules Ferry”, estabelece o carácter laico do ensino, reforçado pela Lei de 30 de Outubro de 1886 (“Loi Goblet”).
É de referir igualmente a Lei de 9 de Dezembro de 1905, que estabelece a separação entre o Estado e a Igreja, traduzindo-se no princípio da Laicidade. Já vimos que este princípio é um princípio fundamental reconhecido pelas Leis da República. São de reportar alguns artigos desta lei. O artigo 1 estabelece que a República assegura a liberdade de consciência e garante o livro exercício dos cultos, sendo que as únicas restrições, são em nome da ordem pública. O artigo 2 demonstra que a República não favorece nenhuma religião. O artigo 28 relata que é proibido colocar um símbolo religioso num edifício público, com excepção dos edifícios de culto, cemitérios, museus, exposições etc..
Relevante é igualmente a Lei de 15 de Março de 2004, que regula, em nome do Princípio da Laicidade, o uso de símbolos ou roupas que expressam de forma manifesta a pertença a determinada religião, nas escolas.

Lei nº2010-1192, de 11 de Outubro de 2010: proibição do uso do véu nos locais públicos.

Qual o conteúdo da lei em apreço?

“Nul ne peut, dans l’espace public, porter une tenue destinée a dissimuler son visage.” O objectivo desta lei é o de proibir que as pessoas, em locais públicos, apareçam com o rosto coberto por uma peça de roupa, proibindo consequentemente, as mulheres muçulmanas de usar um véu islâmico, muitas vezes igualmente denominado “Hijab”, como vimos no começo do nosso trabalho, que dissimule totalmente o rosto nos locais públicos, tais como os hospitais, estabelecimentos de ensino, transportes públicos etc..

Na lei encontramos excepções a esta proibição. É o caso de a exigência de dissimulação do rosto decorre da lei ou de um regulamento, tal como a obrigatoriedade de uso de capacete para conduzir uma mota, por exemplo; ou decorrer de razões de saúde (máscara em caso de epidemia), de motivos de ordem profissional (por exemplo, no caso de desinfestação de navios) ou ainda de manifestações artísticas (actores de cinema, teatro, circo etc..).

Após de enunciar o propósito da lei, e as excepções á proibição, a Lei consagra as consequências do desrespeito da proibição estabelecida. É fixada uma multa no montante máximo de 150 euros e/ou a obrigação de efectuar um estágio de cidadania (“stage de citoyenneté”). É igualmente fixada uma sanção para a pessoa que ameaçar, através de violência ou de coacção, traduzindo-se em abuso de poder ou de autoridade, outrem obrigando-a a dissimular o seu rosto; será punida com um ano de prisão e uma multa no valor de 30 000 euros, medidas que duplicam no caso de a vitima ser menor no momento dos factos.

Foi acordado que a Lei só entraria em vigor seis meses após a sua promulgação, periodo durante o qual, de acordo com o entendimento da Ministra da Justiça, Michelle Alliot Marie, com a ajuda de organizações, tais como o “ Conseil Français du Culte Msulman”, haveria um esforço pedagógico junto do público, quanto ás implicações da lei. Durante esse período, a instancia administrativa superior, o Conselho de Estado, emitiu, dois avisos consultivos nos quais levantava a questão da legalidade do projecto e consequentemente a sua possível contradição com a Constituição. Dai o projecto ter chegado à mais importante instancia de controle, o Conselho Constitucional. Tudo isto demonstra como esta Lei levantou, e ainda hoje continua a levantar, problemas, discordâncias e divergências em França.

Vamos agora apontar alguns argumentos, algumas razões que tiveram na sua base e fizeram nascer esta lei e, por outro lado, apontaremos alguns argumentos que traduzem a existência de discordâncias com esta Lei e o objectivo que ela estabelece. Não pretendemos tomar partido, mas apenas tentar compreender e perceber a lei em apreço e os problemas que ela levanta.
Elementos e argumentos apontados que “legitimam”, “justificam” a lei em apreço.
O primeiro “argumento” deve ser visto à luz do Princípio da Igualdade. Já vimos que, enraizado na cultura islâmica, o véu não nasceu para ser considerado e associado a um símbolo negativo, traduzindo, por exemplo, desigualdade, opressão. Apesar de até determinada altura, nomeadamente até ao século XIX mais ou menos, ser verdade que as mulheres costumavam ter mais direitos legais pela legislação islâmica do que tinham nos sistemas legais do Ocidente, como vimos inicialmente, hoje não é mais o caso. Assim, por exemplo, na maioria dos países muçulmanos, as mulheres tem estatuto legal diferente ao dos homens (na Arábia Saudita, as mulheres não podem conduzir automóveis). Muitas vezes assimilado a uma forma de opressão contra a mulher, existe a ideia de que o uso do véu talvez seja o que mais afasta o ocidente do Islão. Existe, assim, um sentimento de estranhamento ocidental, visto que a defesa da igualdade entre os sexos vê no uso do véu uma condenável submissão da mulher. O véu nasceu da necessidade de proteger as mulheres muçulmanas, mas não pode ser usado para oprimi-las.

Para alguns existe o argumento relacionado com a questão da identidade nacional, mas é um tema bastante polémico em França. A identidade nacional traduz o sentimento que uma pessoa sente por fazer parte de uma nação. Eles defende a ideia de que a Nação foi “destruída” por causa dos inúmeros povos; em vez disso, a identidade nacional devia ter-se assegurado e fazer com que qualquer pessoa que chegasse a França, fazer dessa pessoa um Francês, e não um estrangeiro de nacionalidade francesa. É a ideia de que tem de haver uma certa adaptação por parte das pessoas que foram para França, com o fim de respeitar a Cultura Francesa, a ideia de que o Estado francês não favorece nenhuma religião, em nome do Princípio da Laicidade, adaptação essa que parece essencial para haver respeito dos Direitos e Liberdades das outras pessoas, numa sociedade democrática.

Outro elemento apontado é o da Segurança Pública. A ideia de segurança aparece logicamente associada a uma lógica de existência dos rostos descobertos por parte da população. Por exemplo, no Bilhete de Identidade (ou Cartão de Cidadão) ou no Passaporte, sempre foi usual e lógica a obrigação de uma fotografia com o rosto descoberto, como também sempre foi lógica a imposição de entrar em determinados locais com o rosto descoberto, como por exemplo, nas embaixadas, consulados. Assim, estas limitações consubstanciadas na obrigação de identificação das pessoas sempre foram tidas como lógicas, e não representavam propriamente uma opressão da Liberdade Religiosa.

No seguimento do princípio que acabamos de referir, é importante sublinhar, recorrendo às palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, que a cultura é uma realidade viva e em permanente transformação, dizendo simultaneamente respeito ao passado, ao presente e ao futuro das sociedades, pelo que é inerente a este “ processo contínuo” que se verifique uma situação permanente de conflito e de dialogo entre “velho” e “novo”, entre “tradição” e “modernidade”.
O direito não deve proceder à definição de Cultura, devendo antes restringir-se a uma simples delimitação do respectivo âmbito e devendo criar mecanismos “procedimentais“, para que os conflitos culturais possam ter lugar mas sem que haja a imposição de qualquer juízo valorativo. Assim, admite-se que possam existir relações de conflitualidade com outros direitos fundamentais ou com valores e princípios constitucionais essenciais. Perante uma possível “relação de conflitualidade” entre o princípio da Liberdade Religiosa e o da Segurança pública, já vimos que o legislador francês já não está adstrito ao “Effet cliquet”. Assim, certas limitações ou restrições são permitidas, desde que previstas na lei e sendo medidas necessárias numa sociedade democrática em nome da segurança publica ou em nome da protecção dos direitos e liberdades dos outros. É de salientar que os motivos de restrição devem ser submetidos a uma interpretação estreita e a ingerência do estado tem de ser neutra e imparcial (podemos dizer que foi o caso porque na lei em apreço, o legislador não se refere a uma determinada religião, nem refere sequer o carácter religioso da proibição).

Assim, neste caso, podemos pensar que o legislador conjugou a liberdade religiosa com os princípios da Segurança Pública, e da Laicidade, sem apreciar ou referir-se à legitimidade das crenças religiosas ou das modalidades d’expressão destas, com vista a “promover o respeito dos direitos dos outros e a satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”, nos termos do artigo 29 nº2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Elementos que traduzem a ideia de discordância com a lei e o objectivo nela fixado, traduzindo a ideia de “excesso”.

É de salientar que alguns destes elemento podem ser considerados como radicais ou extremistas, mas traduzem alguns dos problemas que foram levantados na sociedade francesa após o aparecimento da Lei.

É frequente ver esta lei como um fenómeno que pode levar surgimento de um movimento de “Islamofobia”, traduzindo-se num sentimento de ódio e repúdio em relação aos muçulmanos. Têm-se encontrado vários exemplos que atestam o possível surgimento deste movimento. Por exemplo, de acordo com um artigo de jornal, em Maio de 2010, uma mulher de 60 anos acompanhava a sua filha numa loja de roupa, e indignou-se ao ver uma mulher muçulmana, de 26 anos, que usava o véu, nessa loja, na cidade de Trignac. Ela comparou a mulher muçulmana a um demónio de uma série que dissimulava o seu rosto horrível atrás de uma máscara; provocações que levaram à existência de violência física entre as mulheres, no âmbito da qual a mulher muçulmana perdeu o véu, que provavelmente foi sacado pela mãe da filha. Depois das três mulheres terem sido interrogadas pelas as autoridades, a primeira mulher foi acusada de “injúrias e violência”. é ainda de referir que na pendência da promulgação da lei, muitas mulheres muçulmanas afirmaram que vários comércios recusaram servi-las porque tinham um véu.

Para além, de um possível movimento de “Islamofobia”, muitos falam de uma possível associação geral dos muçulmanos ao terrorismo, depois dos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001.

Relembrando o argumento da identidade nacional, este em França é muitas vezes contestado, aparecendo a ideia de que a questão da Identidade Nacional parece escapar ás pessoas que a colocaram e traduzir-se num debate sobre o Islamismo e a imigração. Assim, a pergunta “o que é um francês?” parece transformar-se em “a identidade francesa estará a ser ameaçada pela imigração nomeadamente pelo islamismo? Para os defensores deste ponto de vista, a pergunta correcta seria: “a identidade francesa é capaz de observar e receber as contribuições das outras culturas, tendo em conta a grande diversidade de que goza um país como a França? Ou deve manter a imagem rígida de uma sociedade que não mudou?













Conclusão.


Assim, pode levantar-se a questão se a ideia consubstanciada na Lei em apreço não é uma concretização demasiado excessiva do Princípio da Laicidade, podendo levar a ferir os sentimentos religiosos dos islamistas. Tendo a França optado por um Laicismo com hostilidade em relação às outras religiões (ao contrário da opção alemã, por um Laicismo que se traduz na colaboração do Estado com as demais religiões), tal opção se reflecte com o aparecimento desta Lei, que pode conduzir ao efeito contrário pretendido, levantando inúmeros problemas na sociedade francesa. Deste modo, a Lei em apreço não é vista como uma medida que favorece a integração, podendo levar ao surgimento de fenómenos radicais e extremistas, numa sociedade em que se pretende o contrário. Um exemplo positivo nesta matéria é o da Turquia.
Bibliografia.

VASCO PEREIRA DA SILVA, “A Cultura a que tenho direito - Direitos Fundamentais e Culturais” Almedina, Coimbra, 2007.

http://www.institutvilley.com/IMG/pdf/Veronique_Champeil-Desplats.pdf

http://photos.state.gov/libraries/france/5/pa/France_FRE-%20Final.pdf
http://franceonu.org/spip.php?article5121
http://www.legavox.fr/article/droit-general/interdiction-voile-integrale-france-liberte_2743_1.htm
http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/root/bank_mm/bilan_99/libreg.pdf
http://www.iehei.org/bibliotheque/AliceBLOOMFIELD.pdf





ANEXOS.
LOI Nº2010-1192 DU 11 OCTOBRE 2010, interdisant la dissimulation du visage dans l’espace public

NOR: JUSX1011390L
Version consolidée au 11 Avril 2011

L'Assemblée nationale et le Sénat ont adopté,
Vu la décision du Conseil constitutionnel n° 2010-613 DC du 7 octobre 2010 ;
Le Président de la République promulgue la loi dont la teneur suit :


Article 1

Nul ne peut, dans l'espace public, porter une tenue destinée à dissimuler son visage.

Article 2

I. ― Pour l'application de l'article 1er, l'espace public est constitué des voies publiques ainsi que des lieux ouverts au public ou affectés à un service public.
II. ― L'interdiction prévue à l'article 1er ne s'applique pas si la tenue est prescrite ou autorisée par des dispositions législatives ou réglementaires, si elle est justifiée par des raisons de santé ou des motifs professionnels, ou si elle s'inscrit dans le cadre de pratiques sportives, de fêtes ou de manifestations artistiques ou traditionnelles.

Article 3

La méconnaissance de l'interdiction édictée à l'article 1er est punie de l'amende prévue pour les contraventions de la deuxième classe.
L'obligation d'accomplir le stage de citoyenneté mentionné au 8° de l'article 131-16 du code pénal peut être prononcée en même temps ou à la place de la peine d'amende.

Article 4

A modifié les dispositions suivantes :
Crée Code pénal - Section 1 ter : De la dissimulation forcée du ... (V)
Crée Code pénal - art. R225-4-10 (V)

Article 5

Les articles 1er à 3 entrent en vigueur à l'expiration d'un délai de six mois à compter de la promulgation de la présente loi.

Article 6

La présente loi s'applique sur l'ensemble du territoire de la République.
Article 7

Le Gouvernement remet au Parlement un rapport sur l'application de la présente loi dix-huit mois après sa promulgation. Ce rapport dresse un bilan de la mise en œuvre de la présente loi, des mesures d'accompagnement élaborées par les pouvoirs publics et des difficultés rencontrées.
La présente loi sera exécutée comme loi de l'Etat.


Fait à Paris, le 11 octobre 2010.
Nicolas Sarkozy

Par le Président de la République :
Le Premier ministre,
François Fillon

La ministre d'Etat, garde des sceaux, ministre de la justice et des libertés,
Michèle Alliot-Marie

(1) Loi n° 2010-1192. - Travaux préparatoires : Assemblée nationale : Projet de loi n° 2520 ; Rapport de M. Jean-Paul Garraud, au nom de la commission des lois, n° 2648 ; Rapport d'information de Mme Bérengère Poletti, au nom de la délégation aux droits des femmes, n° 2646 ; Discussion les 6 et 7 juillet 2010 et adoption le 13 juillet 2010 (TA n° 524). Sénat : Projet de loi adopté par l'Assemblée nationale, n° 675 (2009-2010) ; Rapport de M. François-Noël Buffet, au nom de la commission des lois, n° 699 (2009-2010) ; Rapport d'information de Mme Christiane Hummel, au nom de la délégation aux droits des femmes, n° 698 (2009-2010) ; Texte de la commission, n° 700 (2009-2010) ; Discussion et adoption le 14 septembre 2010 (TA n° 161, 2009-2010). - Conseil constitutionnel : Décision n° 2010-613 DC du 7 octobre 2010 publiée au Journal officiel de ce jour.

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